Por que as operadoras odontológicas não pagam pela consulta?
- drmiamoto
- Oct 9, 2013
- 6 min read
Olá leitor!
Quando eu trabalhei como clínico geral, atendendo operadoras de planos de saúde (OPS - também conhecidas como convênios, etc), fiquei intrigado e indignado com o fato de que caso o beneficiário do plano (paciente) voltasse após a primeira consulta e realizasse o tratamento (ou parte dele), o valor da consulta não seria pago. A consulta só é paga caso ele abandone o tratamento logo de cara. Entendo que este é o procedimento padrão na maioria das OPS.
Poxa vida, mas a primeira consulta não é o momento mais importante do tratamento? É na primeira consulta que o cirurgião-dentista (CD) pode INVESTIGAR a história médica e odontológica do paciente, AVALIAR sua anamnese, DIAGNOSTICAR suas necessidades de tratamento, PLANEJAR a terapêutica, ORIENTAR o paciente em relação à sua saúde, entre outros aspectos muito importantes. E para isto, o CD aplica de maneira prática todos os conhecimentos adquiridos ao longo de 4 ou 5 anos de estudo (no mínimo), após um alto investimento financeiro numa graduação em Odontologia (que mesmo nas faculdades públicas é caro na medida em que o instrumental usado pelo aluno é caríssimo). Portanto, é SIM o momento mais importante de um tratamento odontológico, em minha opinião. E POR QUE DIABOS AS OPS SE NEGAM A PAGAR?!
Eu vos respondo: por culpa NOSSA. A culpa, minha gente, é dos próprios cirurgiões dentistas! Não pensem que as tão demonizadas OPS assim decidiram da noite pro dia que seria melhor para os negócios e portanto que se dane o que os CDs acham da primeira consulta. Notem que as OPS somente praticam aquilo que nós CDs aceitamos!
A questão de consulta grátis surgiu por via dos próprios dentistas... Eu sei que o nobre leitor jamais (será?) fez isso, mas a coisa começou quando os colegas, ávidos por fechar tratamento com pacientes particulares, passaram a oferecer esta proposta:
"Dona Maria, se a senhora decidir realizar o tratamento comigo, eu dou o preço da consulta como desconto".
Em outras palavras, o CD ofereceu a consulta gratuitamente. Minha percepção da classe odontológica é que muitas vezes nós nos preocupamos com o QUE nosso colega está fazendo para conseguir receber honorários, sem levar em consideração COMO isto é feito. E pra não "ficarmos de fora", repetimos a ação sem pensar nas consequências. Veja bem, não condeno quem barganha com seus potenciais pacientes, mas esta história de oferecer a consulta gratuitamente foi algo que se voltou contra nós mesmos. Com o tempo, a tal da consulta grátis tornou-se algo "padrão" entre os dentistas, algo tido como aceitável na rotina clínica.
Daí começaram as distorções:
1) Começou a onda de consultas PARTICULARES grátis (ou os infames orçamentos sem compromisso). Primeiro lugar, eu pelo menos não faço orçamento. Quem faz orçamento é o cara da assistência técnica que vem ver a máquina de lavar. Eu faço consulta, com diagnóstico e planejamento. Quando você reduz o tratamento odontológico e a saúde bucal a uma "coisa" a ser orçada (como o conserto de um microondas), e não clarifica a complexidade que o tratamento envolve, o paciente também vai achar que a saúde bucal é uma "coisa". Ele vai "coisificar", igualar a saúde bucal ao cabeleireiro, manicure, pedicure, que em última instância fazem parte do bem-estar individual, mas nem de longe são questões de SAÚDE.
Não culpe seu paciente se ele gasta mensalmente 200 reais no salão de beleza o ano inteiro, ou sempre tem o smartphone do momento, mas acha ruim pagar 600 reais em uma coroa unitária que durará por bem mais que um ano ("nossa doutor, mas 600 reais só UM dente?!").
2) Os próprios pacientes PARTICULARES passaram a crer que a consulta do médico é paga, mas a do dentista não. Faço questão de cobrar pelas minhas consultas SIM, para fazer minha parte no resgate do valor e do prestígio da Odontologia, para conseguir no mínimo arcar as despesas, e para cumprir com meu dever ético. É infração tipificada no Código de Ética Odontológica oferecer tratamento gratuito a quem possa pagar.
"Ai, mas eu fico sem graça de cobrar dos meus pacientes... ninguém cobra!" Se seu paciente, seja classe A, B ou Z achar ruim a cobrança, ou pedir pra que seja de graça, simplesmente responda: "Dona Maria, por favor, não me peça pra fazer de graça a única coisa que sei fazer cobrando."
O importante é não fazer de graça, contanto que cobre algo! Além disso, a maioria dos dentistas realmente não sabe fazer mais nada cobrando, a não ser Odontologia (hehehehe).
3) Finalmente, as OPS a simplesmente agregaram ao seu contrato de credenciamento e diretrizes clínicas este "procedimento padrão" que os próprios CDs iniciaram. Na visão da OPS, "se os próprios CDs assim o fazem, qual o problema da OPS não pagar a consulta se o tratamento for iniciado?". Fica difícil responder, não? Senhoras e senhores, está aí a razão para a qual as OPS não pagam pela consulta.
Como mudar? Minha opinião pessoal é que é perfeitamente possível mudar. No Brasil, por uma questão estrutural de excesso de mão-de-obra, excesso de faculdades, setor público insuficiente e mercado de trabalho aquecido, fato é que as OPS jamais deixarão de fazer parte do nosso cotidiano clínico. Elas são e continuarão sendo o link entre os empregadores (que por força de Lei têm de oferecer tratamento odontológico aos empregados) e nós, CDs. Esta é a real situação. Então que este link seja proveitoso para ambas as partes!
Pra começar a melhora, há de se ter uma verdadeira revolução cultural na qual os CDs finalmente aprendam algo essencial para ser feliz na vida: DIZER NÃO. Se você já trabalha com OPS e está insatisfeito, por que ainda não disse não? Quem falou que você é obrigado a sofrer? Ao aprendermos a dizer não, a coisa começar a mudar. Basta ter coragem e jogo de cintura pra permitir-se ao menos tentar.
Se você acha que vai morrer de fome sem o $$ que vem das OPS, permita-me uma analogia: lembre-se que pra morrer de fome, a gente antes necessariamente emagrece (quem não quer emagrecer nos dias de hoje?), e muitas vezes este emagrecimento pode tornar-nos bonitos, atraentes e com a autoestima resgatada a tempo de não morrermos de fome, na medida em que nos sentimos mais renovados e motivados para perseguir nossos objetivos profissionais.
Em outras palavras, o tempo que se gastava atendendo OPS, você poderá até atender pacientes particulares por bem menos tempo, mas eventualmente pode ganhar o MESMO. Eu não posso garantir que vá dar certo, pois isto é algo que só você poderá responder pra você mesmo.
Depois, há de se resgatar nosso prestígio junto aos pacientes: mostrar com carinho e paciência que por mais que haja gente profissionalmente aquém do mínimo adequado, o dentista é algo bem maior que as "coisas" às quais infelizmente somos comparados (salão de beleza, smaprtphone, manicure, etc). Mostremos que nós lidamos com o bem maior da pessoa, sua saúde.
E finalmente, paremos de demonizar as OPS. Nenhuma operadora faz o CD de refém e o obriga a assinar um contrato de credenciamento com termos considerados abusivos. Quem assina por vontade própria é o CD. Portanto, conheça quanto custa sua hora de trabalho, qual seu nicho de mercado, se você está disposto a aceitar os procedimentos de auditoria, se o repasse oferecido pela OPS vai ser suficiente... Não adianta se jogar num abismo e achar que o baixo repasse será compensado pelo alto fluxo de atendimentos. Não é bem assim que funciona, e uma vez que você aceitou participar sob os termos do contrato que você mesmo assinou, com que moral você quer achar ruim depois?
Então, atenção ao credenciar-se. Enxergue que as OPS estarão por aí durante muito tempo (o sistema é f..., deal with it), e cabe a nós trabalharmos somente com aquelas que nos oferecem algo justo. É clichê, mas verdade: "o CD existe sem as OPS, mas as OPS não existem sem o CD". Não é pecado trabalhar com OPS, pecado é aceitar trabalhar em condições que sejam ruins pra ti!
Ah, não custa lembrar: não adianta esperar que as associações de classe resolvam todos nossos anseios e nos entreguem tudo de mão beijada se a mudança não partir de nós mesmos, um a um, cabeças pensantes que ousam dizer não e pagar pra ver o que acontece caso tentemos fazer algo que "por incrível que pareça", é pelo nosso bem, nossa satisfação profissional e em última instância, por um tratamento melhor ao nosso paciente.
Que este que vos escreve possa ter causado em sua mente uma reflexão. Humildemente agradeço a resistência por ter chegado até aqui na sua leitura! Deixo um forte abraço e uma palavra de incentivo para que seja feliz na nossa fascinante profissão!
Boa semana! Miamoto
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