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Odontologia Legal e Antropologia Forense
Prof. Dr. Paulo Miamoto
Cirurgião-Dentista
Especialista e Doutor em Odontologia Legal CRO-SC 18.385

Tecnologias 3D open source, smartphone e sua aplicabilidade na Odontologia Veterinária
26 Nov 2013

Olá leitor! Durante a III Jornada de Odontologia e Antropologia Forense da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FO-USP), apresentei um painel sobre a eficácia dos escaneamentos feitos por fotogrametria. Com meu parceiro de pesquisas, Cícero Moraes, iniciamos a aplicação desta ferramenta com fins forenses. Utilizamos esta técnica para criar réplicas de crânios que sirvam de arcabouço para Reconstrução Facial Forense (RFF).
O vídeo abaixo mostra a técnica:
Durante o estágio que realizei na Faculdade de Ciências da Universidade Masaryk, em Brno, República Tcheca, escaneamos seis crânios por dois métodos diferentes: a laser (padrão ouro) e por fotogrametria (utilizando apenas fotografias digitais e softwares abertos – PPT GUI e MeshLab). Para comparar as malhas 3D resultantes, no software (também aberto) CloudCompare, realizamos a sobreposição entre as malhas de um mesmo crânio: obtidas a laser e por fotogrametria. Os resultados são exibidos na forma de um tipo de mapa de cores, com imagens semelhantes àquelas câmeras com sensores térmicos. As zonas azuis ou vermelhas correspondem a picos de discrepância entre as malhas, ou seja, locais onde o escaneamento por fotogrametria ficou mais profundo ou mais raso em relação ao escaneamento a laser. Por outro lado, as áreas em verde são áreas que indicam alta semelhança de formato entre as malhas. Neste estudo, os crânios exibiram discrepâncias que tendiam a 0 mm (zero milímetros)! Os picos, em azul ou vermelho, eram locais com 1 mm (um milímetro) de discrepância! Em termos práticos, concluímos que as réplicas 3D feitas com fotografias digitais eram bastante fieis aos objetos originais. Para compreender melhor, veja aqui o pôster em alta definição.
Com muita alegria, recebemos o prêmio de primeiro lugar entre os trabalhos apresentados naquele evento:
Muito maior foi nossa alegria quando, ao ver este pôster, a Profa. Dra. Beatriz Silva Câmara Mattos nos falou sobre a aplicabilidade potencial da técnica em sua área de estudos, a Prótese Bucomaxilofacial. Esta especialidade da Odontologia cuida, entre outras coisas, de desenvolver próteses para pacientes que perderam áreas extensas e significativas de seu sistema craniofacial, como olhos, nariz, palato, etc. A Profa. Beatriz me convidou para dar uma aula sobre escaneamantos por fotogrametria em sua disciplina de Tratamento Reabilitador Bucomaxilofacial, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Odontológicas da FOUSP. À época, ainda como um aluno de doutorado, receber um convite de uma docente da FOUSP para lecionar em sua disciplina foi uma grande satisfação. Para mais detalhes sobre como escanear uma face com fotografias feitas por smartphone, clique aqui.
Na sala de aula havia colegas dentistas, todos interessados em aprender como digitalizar uma face (ou um defeito facial) para fins protéticos. Para minha surpresa, entre os alunos havia também um médico veterinário, o Dr. Roberto Fecchio, especializado em Odontologia Veterinária. Este ilustre profissional realiza tratamentos odontológicos em diversas espécies animais, inclusive tratamentos reabilitadores de prótese bucomaxilofacial. Vejam só que interessante estes dois casos de próteses de bico para pássaros que ele trabalhou, simplesmente fantástico:
Uma prótese de bico feita do modo convencional é uma verdadeira obra de arte científica (ou de ciência artística?), pois depende muito da habilidade da equipe para planejar, instalar implantes osseointegráveis, moldar a região e instalar a prótese. O Dr. Roberto se interessou muito pela técnica de fotogrametria, e deu a Cícero e eu uma nova missão: digitalizar um bico de tucano. Pode parecer pouco importante, mas pense nas possibilidades que uma réplica de bico digital (e fiel ao original) pode oferecer aos animais enfermos: com o desenvolvimento dos softwares abertos, a réplica pode ser editada, adaptada a seu crânio tomografado, ajustada, e impressa em 3D (inclusive a cores). Ou seja, a confecção das próteses pode ser simplificada e acelerada, com resultados bastante previsíveis, menos invasividade para a moldagem do animal e custos reduzidos. Embora este procedimento não seja inédito, realizá-lo de maneiras alternativas, com ferramentas abertas, pode contribuir para a Prótese Bucomaxilofacial em Odontologia Veterinária.
Com o bico do tucano em mãos, fiquei maravilhado com a Natureza. O bico tem cores vibrantes, é extremamente leve, composto por osso esponjoso. Ao mesmo tempo, resistente, pontudo e afiado, com bordas serrilhadas. Além disso, serve para ajudar o animal a regular sua temperatura corpórea, e claro, auxiliar sua alimentação. Reabilitar uma estrutura anatômica como esta, ainda que com limitações próprias da técnica, é um ato que pode melhorar muito a vida de um animal enfermo.
Pois bem, vamos à digitalização: desta vez, usei a câmera de meu smartphone (iPhone 4) ao invés de uma câmera DSLR. Queria ver se conseguiria bons resultados com uma ferramenta ao alcance de muitas pessoas. Com o auxílio de planos de fundo desenvolvidos pelo meu colega Dr. Rafael Araújo, mestrando em Odontologia Legal da FOP-UNICAMP, fiz aproximadamente 60 fotos para cada parte do bico: superior e inferior.
Cada parte foi processada separadamente no PPT-GUI e deu origem a duas nuvens de ponto, em formato .ply. O próximo passo foi importar estes arquivos no Meshlab, ajustar a escala, limpar as nuvens e alinhar ambas.
Após, gerou-se uma malha 3D a partir da união entre os vértices das duas nuvens de pontos. A cor também foi aplicada com base nas cores oriundas das nuvens de ponto.












Para uma melhor qualidade final na impressão 3D, com o auxílio do meu caro amigo Cícero Moraes, realizamos um acabamento na malha, como se passássemos uma lixa nela. Reparem nas duas imagens abaixo, vista em modo de visualização hidden lines, como a superfície da malha era rugosa antes, e lisa depois:
A esta altura do processo, podemos dar por finalizada a réplica 3D do bico de tucano. Este arquivo pode ser exportado em formatos para edição e impressão 3D, como .obj, .ply, .stl, entre outros. Lembre-se: tudo foi feito utilizando a câmera de um smartphone e software aberto! Sem necessidade de scanners, tomógrafos, softwares pagos... apenas com o que está ao nosso alcance.
O uso do software aberto possibilita ao usuário aplicá-lo de acordo com suas demandas profissionais, e logo materializar soluções imediatas para necessidades recorrentes. Na área da saúde (humana e animal), podemos classificar isto como prevalência e incidência de doenças, por analogia. Assim, desenvolvimento de uma prótese deve priorizar aspectos ligados a estética e função, planejando-se para que estes dois fatores interajam de maneira segura e eficiente com o organismo do paciente.
Disso resulta o questionamento: de que maneira esta réplica 3D pode ajudar algum pobre tucano portador de deformações e debilidades de sentido e função? Da maneira mais simples: servindo como modelo para o planejamento e desenvolvimento de sua futura prótese (por favor perdão, foi irresistível o trocadilho) bico-maxilofacial.
Debruçar-se sobre a sua função é o primeiro passo. É necessário que a prótese impressa tenha uma forma harmoniosa, que adapte-se anatomicamente e reabilite a função alimentar do paciente. A dissipação de forças, por assim dizer alimentares (ao invés de forças mastigatórias, pois creio que os tucanos não mastiguem como os humanos), será otimizada se sua superfície assim favorecer.
Então, no Blender, a materialização da prótese inicia-se com técnica de modelagem 3D. Para desenvolver uma peça capaz melhorar a dissipação de cargas, a técnica utilizada para a simplificar a estrutura a partir da réplica de bico é a retopologia. A partir da malha complexa da réplica, é criada uma remodelagem simplificada, uma derivação, utilizando-se menos polígonos, dispostos ordenadamente de maneira a reproduzir sua morfologia sem as irregularidades superficiais. Com isto, o aspecto funcional da prótese é contemplado.
O escaneamento feito com o sofware PPT-GUI gera, além de nuvens de ponto, arquivos .txt contendo scripts que permitem calcular a posição da câmera em cada fotografia. Estes scripts, quando importados no Blender, posicionam virtualmente cada câmera na cena, permitindo uma sobreposição precisa entre a nuvem de pontos e a fotografia projetada na tela, a partir daquela exata localização. Em outras palavras, é uma espécie de gabarito altamente preciso para a modelagem. Veja a sequência de fotos abaixo e perceba como a prótese toma forma altamente precisa e funcional, a partir de um template orgânico:



As câmeras virtuais posicionadas em relação à nuvem de pontos densa.


A malha da réplica do bico alinhada com a nuvem de pontos densa.

A réplica do bico sobreposta à projeção da fotografia, vista a partir da posição da câmera

Com as câmeras servindo como uma espécie de gabarito, a modelagem da prótese tem início. De polígono em polígono, a nova malha 3D toma a forma da nuvem de pontos densa.





A modelagem da prótese por técnica de retopologia finalizada.
Uma vez executada a retopologia, a função da prótese foi resolvida. O próximo fator básico de uma prótese, é a sua estética. Para colorir a malha obtida por modelagem, aplicou-se uma técnica, denominada textura por projeção. Basicamente, uma parte das fotos do escaneamento é usada para ser aplicada sobre a prótese, como se fosse um papel de parede.
A estrutura poligonal da prótese é desembrulhada, transformando-se em uma espécie de adesivo sobre o qual são projetadas as cores originais das fotografias. Isto chama-se mapa de projeção. Veja o processo na sequência de fotos abaixo:

A estrutura poligonal desembrulhada.

O mapa de cores baseado nas fotografias aplicado sobre a estrutura.

A malha da prótese, já texturizada, sobreposta à nuvem de pontos densa. Veja no vídeo abaixo como ficou o resultado final, no Meshlab.
Com função e estética levados em consideração, esta prótese-modelo está pronta. Ela pode ser editada, remodelada, recolorida e redimensionada de acordo com a particularidade de cada caso. Esta versatilidade dos modelos 3D permite ao médico-veterinário uma maior previsibilidade e menos necessidades de ajustes manuais, no procedimento de instalação. Se o caro leitor também quiser manipular esta prótese online, sem precisar baixar nenhum arquivo ou instalar nenhum software, clique aqui!
Este trabalho foi realizado em dois dias. Sim, caro leitor, dois dias. É rápido? Com certeza. Mas significa que é fácil? Fácil não é, mas com certeza é simples. Não é necessário ser um astrofísico para compreender como chegar às soluções. Todavia, faze-lo em tão pouco tempo é o resultado de muito treinamento, tentativas e erros. Por parte destes autores, e também por parte de usuários de software livre espalhados pelo mundo, que compartilham suas experiências, resultados e desbravam novas possibilidades para seus pares. Somente quem ousa acreditar nos softwares abertos, e utiliza-los, pode de fato alcançar resultados como estes (o que você está esperando?).
Qual a diferença entre o trabalho aqui desenvolvido e o trabalho desenvolvido por estes americanos que reabilitaram o bico de uma águia? A equipe era interdisciplinar, composta por uma veterinária especialista em aves de rapina, um cirurgião-dentista e um engenheiro. Nos fins, nenhuma. Nos meios, talvez algumas poucas. Veja também um artigo e um vídeo do Dr. Roberto Fecchio, no qual uma prótese de tucano é confeccionada a partir de um bico natural:
Gostaria de salientar que minhas "bicadas" acerca de características a serem consideradas numa prótese são apenas e tão somente aquelas que aprendi na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP-UNICAMP), durante minha graduação, com meu pai (especialista em Prótese Dentária) e na prática clínica. Obviamente que a prótese para pacientes veterinários reveste-se de muitas particularidades alheias às próteses de pacientes humanos, todavia busquei transpor alguns conceitos básicos que acredito serem comuns a ambas disciplinas. Por isto, nada mais bem-vindo que o feedback dos veterinários!
Como cirurgião-dentista, especialista e doutor em Odontologia Legal, é uma verdadeira felicidade poder trabalhar para ajudar pessoas de diversas áreas, somente com o uso de ferramentas amplamente acessíveis à maior parte das pessoas – um smartphone e um computador. Minha aventura no mundo do 3D mal começou, e nunca imaginei que iria um dia ajudar o pessoal da Medicina Veterinária! A cada dia, faço mais amizades com pessoas que compartilham meus interesses no que diz respeito à pesquisa. Sinto-me feliz e ao mesmo tempo perplexo por não ter tido este contato com o software aberto há mais tempo. A atmosfera de cooperação e interdisciplinaridade que permeia este segmento é um raio de esperança para alguém que sempre esteve em contato com o meio acadêmico, algumas vezes marcado por individualismos e rivalidades.
Caro leitor, obrigado por acompanhar mais uma postagem deste blog. Como sempre, espero que este texto tenha trazido uma reflexão sobre como temos tudo ao nosso alcance, mas pouco aproveitamos. Despeço-me deixando uma mensagem de incentivo e motivação: abrace o software aberto, busque conhecimento, aplique-o à sua área de interesse, não hesite em dar suas “bicadas”! A Ciência e a Natureza agradecem!
Para ficar por dentro de nossos avanços e nos ajudar a difundir o software aberto, curta a fanpage Miamoto & Moraes - Forensic Facial Reconstruction, e compartilhe este post!
Um forte abraço e até a próxima!!
Miamoto e Moraes.
Agradecimentos: Aos Professores Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani e Petra Urbanová, pelo apoio durante meus estudos de doutorado; Ao Dr. Roberto Fecchio, pela oportunidade de contato com a Medicina Veterinária; Ao Professor Eduardo Daruge Jr. e o mestrando Rafael Araújo, pelo apoio e acesso ao laboratório. E aos leitores, colegas e amigos, que sempre nos apoiam nestas empreitadas.
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